A fibrilação atrial (FA) é uma taquicardia supraventricular (TSV) caracterizada por uma atividade elétrica atrial descoordenada e consequentemente com contração atrial ineficaz.
As características eletrocardiográficas da FA são:
- Intervalo RR irregularmente irregular (na presença de condução AV normal).
- Ausência de onda P identificável.
- Atividade elétrica atrial irregular.


Estima-se que a prevalência da FA em adultos seja de 2-4%, podendo este número até triplicar com aumento da longevidade da população e melhora das tecnologias para diagnóstico. A FA pode ter um curso assintomático em que o risco de complicações já existe e está associado ao remodelamento atrial e cardiomiopatia atrial. Sendo assim, diagnosticar e tratar precocemente a FA pode ter um grande impacto na incidência de duas das principais causas de óbito no mundo moderno: a insuficiência cardíaca e o acidente vascular cerebral isquêmico. Além disso, a FA está relacionada a diminuição da qualidade de vida que pode ser observada pelo aumento da incidência de demência vascular e maior incidência de déficit cognitivo mesmo na ausência de AVC.
- A FA é a causa de 20 a 30% dos casos de AVC isquêmico e 10% dos AVC criptogênicos.
- Cerca de 20 a 30% dos pacientes com FA desenvolvem insuficiência cardíaca congestiva (ICC).
- Cerca de 10% dos indivíduos com AVC isquêmico descobrem FA no momento do diagnóstico do AVC.
Há vários fatores de risco para o desenvolvimento da FA; a maioria deles pode ser evitado através da mudança de estilo de vida. Mas, além da prevenção, é necessário identificar precocemente os indivíduos com FA subclínica ou clínica assintomática.

A FA clínica assintomática carreia um risco de evento tromboembólico suficiente para considerar anticoagulação (ACO) mesmo na ausência de sintomas. E por isso, a implementação de estratégias de rastreamento da FA clínica assintomática, controle da arritmia e ACO destes pacientes poderá impactar de forma considerável na prevenção da progressão da insuficiência cardíaca e cardiomiopatia atrial bem como prevenção de eventos tromboembólicos cerebrais.
Uma boa estratégia de rastreamento da FA precisa utilizar ferramentas de baixo custo, baixo risco para o paciente e com alto valor preditivo positivo. Vivemos um momento de grande inovação tecnológica e avanço na telemedicina que oferece vários dispositivos de custos variáveis, mas de baixo risco ao paciente por serem não invasivos. A desvantagens destas metodologias seriam os falsos positivos que desencadeariam uma cascata investigativa desnecessária expondo o paciente a riscos desnecessários. Nós, médicos, precisamos ter bom senso e pensamento crítico diante desta nova realidade. É necessário aumentarmos o valor preditivo positivo das metodologias realizando o rastreio da FA em pacientes que fazem parte de grupos de maior risco e que se beneficiariam da ACO e do tratamento da FA.
Mas qual seria melhor ferramenta para rastreamento da FA?
Há diversos dispositivos disponíveis na atualidade e muitos outros em desenvolvimento. Aqui temos alguns exemplos.
- Manguitos de pressão arterial oscilométrico.
- Smartphones com fotopletismograma.
- Smartwatch com fotopletismograma semi-contínuos com leituras intermitentes do ECG e que enviam notificações de irregularidade no pulso ou sintomas.
- Dispositivos conectáveis ou próprios de smartphones com registro de tiras de ritmo de ECG feito pelo próprio paciente.
- Cintos de monitorização continua.
- Holter de longa permanência.
- Monitores contínuos de ECG em forma de adesivos que duram 1-2 semanas.
- Dispositivos de monitorização implantados.
- Monitores de eventos não implantáveis que monitorizam e transmitem, via sinal de celular, para um central, de forma intermitente programável ou ao acionar botões de evento.
- Monitores de telemetria de unidades de AVC.
Mas será que essas ferramentas seriam mais efetivas que o exame clínico periódico associado ao registro eletrocardiográfico? Talvez em indivíduos com maior risco estas ferramentas associadas ao exame clínico e ECG periódico seriam a melhor metodologia de rastreio da FA. Nós ainda estamos no período de validação das ferramentas disponíveis e o nosso grande desafio será analisar criticamente quais os melhores dispositivos, ou ainda, qual a ferramenta mais adequada ou que está disponível para o nosso paciente. Vale lembrar que o Brasil tem uma enorme diversidade de acesso aos serviços de saúde o que pode influenciar na escolha da metodologia e da estratégia de rastreamento.
Já os pacientes portadores de dispositivos implantáveis (marcapassos artificiais, cardio-desfibriladores implantados e ressincronizadores cardíacos) podem se beneficiar do registro intracavitário da atividade elétrica atrial. Os episódios de frequência atrial elevada (EFAE) acima de 175bpm registrados pelo eletrodo atrial do dispositivo são considerados registros suspeitos e podem corresponder a artefatos ou verdadeiras arritmias atriais como a FA, o Flutter atrial e a Taquicardia atrial. Infelizmente, os dispositivos implantáveis ainda não são capazes de diferenciar artefatos de verdadeiras arritmias atriais. Sendo assim, um médico experiente precisa analisar os registros e confirmar que tais episódios são verdadeiras arritmias atriais. Após essa confirmação devemos fazer um registro de ECG de 12 derivações e se registrado FA estaremos diante de uma FA clínica. Caso o ECG seja normal há ainda a possibilidade de se realizar registros intermitentes, duas vezes ao dia, de pelo menos 30 segundos por um período de 2 semanas para flagrarmos a FA. Por outro lado, se o ECG ou os registros intermitentes não apresentarem FA, trata-se de FA subclínica.

A tabela a seguir traz as nomenclaturas atualmente sugeridas pelo Guideline da Sociedade Europeia de Cardiologia em colaboração com a Associação Europeia de Cirurgia Cardio-torácica de 2020.

Atualmente se fizermos o diagnóstico de FA clínica assintomática indicamos a ACO baseado no cálculo do CHA2DS2-VASc. Mas será que estamos realmente diminuindo o risco embólico ou estamos aumentando o risco de sangramento para um paciente assintomático? Estudos sugerem que a FA clínica assintomática teria três vezes mais risco de AVC antes do diagnóstico da FA e que após o diagnóstico da FA o risco é igual ao da FA clínica sintomática. Desta forma, o rastreamento da FA em indivíduos assintomáticos traria os seguintes benefícios:
- Prevenção de AVC.
- Prevenção de morte.
- Prevenção de ICC.
Entretanto, o benefício dessas estratégias pode variar de acordo com a idade e prevalência de fatores de risco na população estudada.
- Cerca de 1,4% dos indivíduos ≥ 65 anos apresentam FA clínica assintomática quando submetidos a rastreamento.
- A FA clínica assintomática pode estar presente em 3% dos indivíduos de 75-76 anos submetidos a registro intermitente de traçados de ritmo 2 vezes ao dia durante 2 semanas. E quando estes mesmos pacientes apresentam pelo menos um outro fator de risco para a idade a detecção de FA por esta mesma metodologia pode chegar a 7,4%.
Os indivíduos com FA clínica assintomática detectada incidentalmente podem apresentar taxa de AVC de 4% e de óbito de 7% em 1,5 anos, enquanto grupos semelhantes apresentam 1% de AVC e 2,5% de óbito. Diante das evidências atuais talvez não fosse ético elaborar um trabalho randomizado com grupo de não ACO para FA clínica assintomática a fim de se estimar qual o risco de sangramento estamos acrescentando a estes pacientes ao anticoagulá-los. Além disso, risco de sangramento alto não é contraindicação de ACO, mas sim uma necessidade de maior cuidado e seguimento durante a ACO. E por isso, se não houver uma contraindicação absoluta para ACO e o risco de evento embólico for alto, justifica-se a ACO aliada a acompanhamento mais rigoroso e sempre que possível com equipe multidisciplinar.
Cerca de 34% dos indivíduos portadores de dispositivos implantáveis com mais de 65 anos e com átrio esquerdo >76,5ml apresentam FA subclínica. Entretanto, estima-se que o risco de complicações tromboembólicas nestes pacientes seja menor que o da FA clínica assintomática. Mas será que haveria um subgrupo destes pacientes de maior risco? O quanto o escore CHA2DS2-VASc ajudaria a discriminar os pacientes de risco? Haveria algum fator de risco que implica em maior risco de evento embólico?
Desta forma podemos concluir que ainda há muitas perguntas a serem respondidas e devemos fazer uma leitura consciente e crítica nos resultados que estão por vir.
Por hora, consideramos uma boa estratégia de rastreamento fazer busca ativa para FA clínica em indivíduos acima de 75 anos, principalmente se portadores de algum outro fator de risco para FA, utilizando uma metodologia ao alcance do paciente e escolhida por decisão conjunta entre médico, paciente e seus cuidadores. E em indivíduos acima de 65 anos o exame clínico com registro periódico de ECG de 12 derivações.
Além disso, a orientação ao paciente e seus cuidadores de como palpar o pulso ou de como utilizar ferramentas, já disponíveis para o paciente, poderia ser uma estratégia auxiliar.
Uma boa prática médica se faz com prevenção e tratamento precoce dos fatores de risco, diagnóstico precoce e terapêutica adequada ao risco individual. Tudo isso através do bom uso da tecnologia e inovação e discussão conjunta entre um médico consciente, paciente e seus cuidadores.
Leitura sugerida:
Gerhard Hindricks, Tatjana Potpara, Nikolaos Dagres, Elena Arbelo, Jeroen J Bax, Carina Blomström-Lundqvist, Giuseppe Boriani, Manuel Castella, Gheorghe-Andrei Dan, Polychronis E Dilaveris, Laurent Fauchier, Gerasimos Filippatos, Jonathan M Kalman, Mark La Meir, Deirdre A Lane, Jean-Pierre Lebeau, Maddalena Lettino, Gregory Y H Lip, Fausto J Pinto, G Neil Thomas, Marco Valgimigli, Isabelle C Van Gelder, Bart P Van Putte, Caroline L Watkins, ESC Scientific Document Group, 2020 ESC Guidelines for the diagnosis and management of atrial fibrillation developed in collaboration with the European Association of Cardio-Thoracic Surgery (EACTS): The Task Force for the diagnosis and management of atrial fibrillation of the European Society of Cardiology (ESC) Developed with the special contribution of the European Heart Rhythm Association (EHRA) of the ESC, European Heart Journal, , ehaa612.
Bem Freedman. Screening for Atrial Fibrillation A Report of the AF SCREEN International Collaboration. Circulation. 2017; 135:1851–1867.
Engdahl J, Andersson L, Mirskaya M, Rosenqvist M Stepwise Screening of Atrial Fibrillation in a 75-Year-Old Population Implications for Stroke Prevention Circulation. 2013; 127:930-937.
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